Inferno

Essa manhã cinza e enfadonha dá preguiça

O aconchego da cama é tal que enfeitiça

A validade da vida parece postiça

E o mecanismo de “se levantar” quase enguiça

Reclamo da paisagem monótona e acinzentada

Mas me cubro de cinza e também fico nublada

Tal como o dia que tanto desprezo e renego

Me confundo com o entorno, a despeito do meu ego

Discretamente escondida em meio ao mau tempo

Olhos marcando chuva a qualquer momento

Ou garoa esparsa, mas com muito vento

Impossível existir nesse frio. Mas eu ainda tento.

     

Trivial

Quisera eu estar presente
Mas o mundo em desatino
Me desorienta a mente

O apuro é muito e o alívio pouco
Corro em permanente sufoco
A alma mal se segura ao corpo

Estar presente é um desafio louco
Me dói parar, solto um grito rouco

E é aí que existo.

Lá, onde estou
No agora que já fugiu
O ser em mim é o que me restou

Sina do poeta

  Triste é o masoquismo do poeta
  Presa fácil de insólitas melancolias
  Dobrado ao dispor sádico do poema
  Que não surge antes de alguma avaria

  Entre muito sofrimento e algumas lágrimas
  O doentio riso de satisfação
  Da pele marcada pelos golpes do delírio
  Sangram, enfim, palavras fugindo ao exílio

De mim e de ti

O encontro contigo é sempre infinito.

Congela o tempo, amplia o espaço

Enquanto me enrosco em seu abraço

Passando

E você muda, se altera, se melhora
Encara os fatos e não mais chora

Vê de longe o espectro de seu passado
Ficou para trás o dito pelo maldito

O que teve fim e o que não foi terminado
Aquele mal estar outrora infinito

Deu lugar a um "eu" melhor acabado
Se às vezes me pergunto porque insisto

Já não sei que diferença faz não estar errado
Se existe coerência ou se é mais um mito

Ao menos não há um rumo traçado
Minha rota segue o rumo que delimito

Sinto o caminho apenas ter começado...

Ímpar

Em meu passo acelerado,
Transtornada, cheguei a tropeçar

Por muito pouco não caí...

Corri meu passo consertar
Voltei ao percurso esperado

Nessa via líquida na qual me encontro
Um passo às vezes não me leva à frente

Mas ao fundo

Me afundo em um mar superficial
Onde apenas a distância permanece abissal

Onde palavras gritadas encontram ouvidos moucos
Onde os sonhadores são tomados como loucos

Onde uníssono saudamos essa loucura coletiva
Isolados cada qual em seu universo, perdido em sua ilha

Todo ano novo

No ano novo

Desejo mais presença e menos distância
Mais compreensão e menos implicância

Que possamos ter um tanto menos de certezas
Para podermos distribuir mais gentilezas

Quero bem menos mensagens eletrônicas
E muito mais ligações telefônicas

Poder vencer a correria, o tempo e o espaço
E apertar os amigos dentro de um forte abraço

Quero poder parar de 'correr atrás' insanamente
E começar a caminhar 'à frente' tranquilamente

Quero poder ajudar muito mais que ser ajudado
porque além do meu umbigo há um mundo a ser mudado

Quero entender com menos dor que se o entorno está imutável
Posso mudar a mim e fazer dessa fase uma via trafegável

Quero poder melhorar como ser humano
Sem abdicar de algum prazer mundano

Quero sorver os dias com alegria
E não perdê-los em ansiosa agonia

Quero partilhar o meu melhor com os outros
E que esses momentos possam não ser poucos

Quero tirar mais poesias do eterno rascunho
 E, quem sabe, mandar cartas escritas de próprio punho

Quero fazer mais viagens independente de com quem ir
Quero vislumbrar o horizonte com mais motivos pra sorrir...